Thursday, September 6, 2007

Amora e areia

.

Olheiras enormes circundam meus olhos insones. Uma semana inteira sem dormir ou quase. A cada noite sinto aumentar o meu pavor aos despertadores de cabeceira, aqueles de numeros luminosos verdes ou vermelhos que contam minuto a minuto a nossa agonia. E como se nao bastasse, os novos modelos projetam a hora no teto ou na parede a criterio do fregues, quanta tortura...
Fora isso, o silencio... O silencio da madrugada e' muito mais ruidoso do que as pessoas possam imaginar, nele seus pensamentos criam vozes que te perseguem, causando-lhe a sensacao de estar esquizofrenico.
Normal, mal mesmo porque bem nao pode ser.
.

Numa noite rara dessas em que durmo sonhei encontrar Frida Kahlo.
Seu famoso bigode estava grisalho e sua sobrancelha grossa e negra agora branca como neve, conferiu leveza ao seu rosto de tracos brutos. Ela estava em paz...
Seu espanhol cretino, digo, latino, havia curiosamente adquirido tracos inegaveis de sotaque nordestino. A tarde caia lenta quando Frida serviu-me uma xicara de cafe. Bem acomodada em sua cadeira de balanco, Frida comecou a me contar sua chegada ao nordeste brasileiro. Apos sua morte, encantada pela paisagem agreste, Frida comecou a vagar pelo sertao... Dificil acreditar como aquele arido cenario teria fertilizado sua imaginacao... Uma dezena de quadros novos povoavam as paredes de sua modesta casa.
A nova versao do seu famoso auto-retrato sempre carregado de uma expressao seria e carrancuda, chamava atencao por um unico detalhe: um timido sorriso. Sim, Frida agora sorria e sorria muito, disse estar aliviada por enterrado junto com o seu corpo toda amargura e sofrimento, sua alma agora era livre e leve.
Um cheiro de cigarro de rolo adentrava pela janela, Frida comemora:
- Ele chegou, ele chegou! E corre ate a porta.
Empalideco com a descoberta, o namorado de Frida e' o famoso Rei do Cangaco, sim, ele mesmo, Lampiao, em carne e osso, digo, em alma e espirito. Maria Bonita, sua mais recente amiga e confidente nao fazia ideia do clandestino caso de amor entre Frida e seu marido.
Amantes insaciaveis, Lampiao e Frida passavam torridas tarde de amor rodeados por telas e tintas. Frida tinha medo que Lampiao queimasse suas telas acidentalmente com seu cigarro, mas ele era cauteloso.
Lampiao chegou agitado, disse ter cruzado com Diego Rivera naquela tarde e manifestou subita vontade de tortura-lo ate a morte. Humilhada por Diego Rivera durante toda a sua vida, os olhos de Frida brilharam! Apaixonado por Frida, Lampiao queria vingar-se por ela e tecia detalhes sordidos do seu plano de execucao, sem parecer se importar com a minha presenca. E foi quando de repente, Lampiao calou-se e ficou pensativo. Frida preocupada pergunta:
- O que houve?
Lampiao tira do bolso o fumo e comeca a enrolar outro cigarro calmamente. Atenta aos sinais, Frida coloca a garrafa de aguardente sobre a mesa. Apos o trago, Lampiao acende o cigarro que faz uma fumaca densa e mal cheirosa. Lampiao frustado conclui:
- Queria matar Diego, mas Diego ja e' morto, tao morto quanto eu.
Fez-se um silencio tenso.
Frida vai ate a cozinha e volta com uma broa de milho nas maos. Lampiao observa-a calado. Frida diz:
- Virgulino, deixe de besteira homem, Diego era um borra-botas, um gordo covarde e medroso.
Ora, onde ja se viu torturar um cagao? Apenas os corajosos sao torturados, os medrosos pedem pinico!
Lampiao deu uma sonora gargalha e repetiu:
- Borra-botas, Diego cagao! Hahahahaha......
- Sim, um cagao, repetiu Frida e riu mais ainda...
Descontraido Lampiao, beliscava a broa que estava sobre a mesa, me deixando com agua na boca. Faminta lembrei-me da geleia de amora que trazia na bolsa.
- Frida, olhe o que eu trouxe pra voce e mostrei o pote.
- Geleia de amora, exclamou ela!
- Sim, geleia de amora! Peco desculpas pois o pote foi destampado pelo vento e pode ser que tenha entrando um pouco de areia.
- Hummm, retrucou Frida, amora e areia, mas que belo titulo para um quadro, nao?
Sorri como se concordasse e dei uma genorosa mordida na broa lambuzada de geleia.
.

Cafe preto, Frida Kahlo, Lampiao, broa de milho e geleia de amora e areia.
Adorei.
.

3 comments:

Glauco Paiva said...

Amiga, seja bem vinda!
Bons ventos a trazem para a esfera virtual. E se você trouxe Frida, café, geléia e broa de milho com você, tomara que tenha vindo para ficar!!!!
Beijos mil!

Thiago Lasco said...

Que bacana, Kekinha! Estreou no mundo blogueiro com um conto bastante original... Frida e Lampião, quem iria imaginar? Beijos e saudades...

TRISTÃO said...

Aqui no norte do Paraná é época de amora. Maduras de um vermelho tão intenso que transcende a azul, negro e violeta.
Parabéns pelo texto. Conduz a imaginação pelo tempo, espaço e surrealismo fantastico.